quarta-feira, 1 de agosto de 2012

1º PRÉMIO NACIONAL DE INCLUSÃO - partilho MOMENTOS do conto em nome da mãe

PEDAÇO DO CAPÍTULO 1 – Casa de tranças

- História, história.

- Fortuna do céu amém!

Uma vez tinha uma menina que era eu, a Clara, e o meu irmão, Camões.

A história que te vou contar é para o meu irmão dormir. Este é o meu irmão Camões. Ele tem cinco meses. Ele só tem um nome de igreja e um nome de casa. Nossa Mãe me contou que havia um homem muito sabido que se chamava Camões e ela gostava muito que o Camões se chamasse Camões, como o mais velho dos livros. O Chefe lá do registo civil mandou dizer à minha mãe que ninguém se chama Camões. Era preciso chamar o menino de Luís, então.

A minha mãe achou que Luís não tinha nada a ver com Camões:

- No registo manda o senhor, no meu filho mando eu.

- Minha senhora, Camões é o apelido de um homem muito sabido, deveras, mas não é nome. Ele se chamava Luís de Camões. Era um grande homem, um escritor e tudo, assim como a Professora lhe contou…

- Camões, Sr. Chefe. O filho é meu. O pai dele viajou eu ainda grávida. Não há-de ser o senhor a escolher o nome para o meu filho, se faz favor.

- Luís, senhora. Luís é que é o nome próprio. Tenho dito, em nome da Lei. Nisto a minha mãe mandingou e quando ela fica assim não responde um piu. O Chefe deu as costas e foi lá para dentro. A senhora do registo queria era obedecer ao Chefe. Minha Mãe deu as costas e foi chamar Tio Sim. Essa não era uma razão para se decidir sozinha. Trouxe o homem da família. Mas Tio Sim achou que não tinha precisão de incomodar o Chefe. E o Tio Sim, que sabia assinar, assinou. E a Tia Segunda, que sabia assinar, assinou. E Mamã que não sabe assinar não assinou.

 Chegou à casa e disse:

“Vamos dar banho ao Camões”.

  “Vamos dar de mamar ao Camões.”

“Camões já fez xixi.”

“Camões já sabe sorrir.”

“ Camões é um menino sabido. Daqui a pouco come cachupa.”

E ficou Camões.

A história que te vou contar é para o irmão Kodê dormir.

Eu sou a Clara, tenho cinco anos e vou estudar a 1ª classe.

O meu nome de casa é Preta, mas meus irmãos e nossa Mãe me chamam de Netinha, porque tem semanas que a Vovó vem passar conosco e então, assim, ninguém se confunde. Vovó conta que antes de se casar com Papai Velho, todos a chamavam de Clarinha de Dona Tuda de Compá António.

Diz que o Pai dela foi um grande emigrante mercano que tinha muitos afilhados cá na terra. Depois que se casou, passou a ser Clara de Gregório Simas. Foi assim que Vovó se chamava quando se casou, por procuração, com o Marinheiro de Mar Alto. Ela tinha 15 anos. Aos 20 anos, já mulher arredondada, conheceu Nhô Gregório na missa de sete dias do seu Pai. Diz que o marido ouviu dizer que já não havia nenhum homem na família para cuidar da honra da sua esposa; e resolveu dar a sua razão para voltar para a terra.

E veio mesmo. Então, sim. Foi aí que nasceram todas as tias da família.

Tio Sim veio no fim. Tia Rosa, Tia Rosinha, Tia Rosita e Tia Rosenda; Tia Maria Sábado, Tia Domingas, Tia Quinta. Então Mamãe Velha não era mais a Clara. Passou a ser Mãe de Sete Filhas. Nominho: Mãe de Sete.

PEDAÇO DO CAPÍTULO 6

Dizem-me os jornais que chove em Cabo Verde: Forti sábi! Se a esperança d’azágua se renova a cada dia e a boa nova da chuva é promessa de ano bom, então à minha boca vêm palavras como milho, fartura, feijão, saúde, festas e certeza. Que o nosso Cabo Verde se faz em segunda sementeira: na monda e na ramonda; e que as bonecas de milho, as cordeiras de feijão, o milho verde assado e a katxupa de cada dia se cozinham, nas três pedras do fogão, no tomar a bênção e no rabo da enxada.

Semear e colher, com o coração de pescador e a certeza do chão que pisas, está também nos livros, cada vez mais, cada vez sim, nos livros. Porque é nos livros que somos! _ e foi contada a nossa história de azeviches. E, nos livros, a morabeza se dá a conhecer para o mundo. Chove em Cabo Verde.

O Contador de Histórias me disse que choveu também em S. Vicente. Sinal de boas águas. De Pe. António Vieira a Mané Quim, haja testamentos de muitos Napumocenos para iluminar a nossa história de azeviches. E haja também Gracinha(s), que herdem, no feminino, uma estória para se contar: com as nossas próprias cabeças e com os pés bem finkados na TERRA: Terra chão, Terra mar, Terra céu.

É que, segundo Princezito, mar é prolongamento de terra, só que na versão molhada. Para verdianos e crioulas, nosso mar e nossa terra… é tudo uma coisa só. E os nossos sonhos…nosso orgulho é tão grande, porque amparados por mil águas: o doce da chuva e o salgado do mar.

Então sim, como dizia a Preta. Decidi me meter nesta história de kunfiada que sou. Eu era para lhe falar de uma bela mulher, dessas que não mais nascerão e que nos deixam uma saudade sem dor, um alívio pelo fim do sofrimento de sete anos e uma morte _diga-se, mesmo que pareça estranho _ tão digna quanto a vida.

Se eu contasse uma história da menina que nasce, cresce e se casa lá pelos interiores de Santiago, forçada à situação de analfabeta, e depois de separada, pelo machismo do seu tempo: e que pare e cria cinco filhos machos e cinco filhos fêmeas, e faz deles dois médicos, duas freiras, um jurista, quatro professores, um electricista e um psicólogo; e todos muito unidos; se somar a estes milagres as deslocações de oito kms diários de ida mais outros de volta, a pé, para se completar o Ensino Básico na Vila, e depois no Liceu da Praia; e depois os estudos na Europa, nas Américas e nas Áfricas, conforme o destino de cada filho, sem que nunca se tenha perdido nem a fé e nem a ligação afetiva entre os membros da família, pode-se entender a grandeza de certas mulheres.

Fica aí uma breve estória do tipo de heroína que a História nunca registará. Estou, sim, de luto; dizem-me que posso ficar até o dia da missa de 7º dia a receber visitas de pêsames, sem trabalhar. Fora o fato de que os últimos meses foram muito sofridos para ela, honestamente, não há o que se lamentar a sua passagem. Mas talvez haja: certas renúncias inconfessas, muitas abnegações escondidas, em nome da educação dos filhos...vá-se lá saber…