segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Do meu livro Outras pasárgadas de mim (no Prelo)


 
PEDAÇOS DO CONTO 1
CAPÍTULO VI – SUKUTA
Purifica o teu coração antes de permitires que o amor entre nele, pois até o mel mais doce azeda num recipiente sujo.
 
Calheta de S. Miguel, anos antes
O grande sonho de Inácio-menino era ter uma casa branca de janelas azuis. Queria plantas trepadeiras no quintal a fazerem sombra ao pote enterrado na areia. Um dia se casaria com uma mulher bonita, preta de coxas largas e leite doce, para parir seus filhos. E teria um cachorro branco, que se chamaria Tejo e um cachorro preto que se chamaria Amigo.
Na sua meninice, os rapazes aprendiam a pelotar o rabo da enxada, para garantir o pão de cada dia. Nas propriedades do seu pai, havia muitos trabalhadores, e Naxe aprendeu com todos eles as lidas do campo. Para o caso de um dia precisar. A família conseguia viver bem, mesmo nos tempos de maior carestia. Mas nunca desejou viver às custas do Pai. Nem queria se beneficiar dos seus haveres.
Por volta das 4h00 da tarde, ia sempre à casa do Padre: aprender a ler, a pensar e a agir (como dizia o Pai). Foi admitido no Liceu Gil Eanes e lá estudou até o 5º ano. Decidiu voltar para a sua terra, na ocasião de uma doença séria de Nhu Artur. Nunca mais saiu de Calheta. Lia jornais, frequentava a igreja e os bailes e passava as tardes de Domingo na casa do Padrinho. Ele tinha livros. Inácio leu todos os que lá havia, mas voltava sempre: gostava de conversar com o Padrinho. Era seu segundo pai.
Tinha 15 anos, quando reparou na Edite. Era contentinha e tinha um corpo bonito. Só que era dois anos mais velha e se julgava uma mulher feita. Um dia aconteceu estarem os dois sozinhos e ele meteu conversa de Mano. Então se os dois tinham o mesmo padrinho, deviam era ser amigos. Ela achou que sim. E sorriu. Sorria sempre para ele. Mas não deu pé para mais nada.
Quando Naxe voltou de vez, Edite já era maior de idade, mas ainda era menina solteira. Disseram-lhe que ela nunca quisera se casar. Apareceram pretendentes, mas ela fazia sempre uma manha para não ser dada em casamento. As línguas diziam que ela tinha sentido era no Naxe.
Um sorriso aberto, um coração grande, mãos para sempre calosas. Alto, corpo robusto, peito largo, cheio de força. Por pouca coisa, dava gargalhadas. Era engraçado. As pessoas gostavam dele. Era dado a todos, não tinha soberba por ser filho de Nhu Artur. Quando Inácio reencontrou Edite, anos depois, na casa do Padrinho, ele desejou-a logo:
- Vais ser minha mulher – ele disse na primeira oportunidade.
Ela deu-lhe as costas e foi ter com a madrinha na cozinha. O Padrinho voltou e continuou a conversa com ele. Inácio não ouviu mais nada e não viu mais ninguém. Sonhou com Edite naquela noite e em quase todas as noites que se seguiram. Nunca mais se encontrou com ela a sós. Ela fintava-o. Quanto mais o fintava, mais ele a desejava.
……………………………………………………………
Mulher bonita é como manga bijagó: quando verde, é amarga e ácida; quando madura, é cheirosa e amarela. Se colhida antes, sabe mal; se não colheres a tempo, cai madura aos teus pés: sabedoria de Naxe-homem, na réstia de lua que cobria os seios de Edite. Já era madrugada de 15 de Agosto. Ela dormia, esquecida da vida. Ele sorria um riso suado. Passou a mão no peito e na barriga e sorriu de novo. Sentiu, sim, que estava acordado e que aquela preta de ancas largas e coxa redonda era mesmo Edite. Era o que importava.
Nem chovia tanto assim e Edite aceitou entrar pelo portão que dava para o quarto do Inácio. Tinha medo de pegar uma constipação. Trabalhadeira como sempre, acabara de ajudar Titia nas boitas da festa e passava por trás do seu quintal, dentro da noitinha. Andava apressada pois queria chegar à casa, antes de o escuro fechar de todo. Mas choveu. Ele viu-a atarantada debaixo daquela aguinha e convidou-a para entrar e se abrigar da chuva. Entraram os dois, apressados. Ela ainda fez questão de sair umas duas vezes. Ele atalhou: espera mais um pouquinho. Não te vás constipar por-si. Protegeu a mana. Estava no seu dever de homem.
Na casa de diante, os pais do Inácio jantavam com os hóspedes que vieram passar o 15 de Agosto de véspera. Ela não se importou de esperar no quarto. Só lhe faria mal ficar de roupa molhada. Precisava de qualquer coisa para se trocar. Naxe não entendia bem como tinha acontecido, entre tentar encontrar qualquer coisa de vestir e ver, sem querer, parte do corpo de Edite. Não evitou o velho hábito de passar a mão pelo próprio corpo, como sempre fazia quando estava ansioso. Não foi intencional provocar Edite, nem foi desrespeitoso ao olhar depois para ela, vestida de uma combinação branca de rendas, a única roupa de mulher que encontrou guardada no quarto ao lado. Rendas, laços e bordados faziam-no sentir tonto. Um dia tentou explicar a um amigo como seus olhos se perdiam nas rendas e bordados de roupa de mulher e como, às vezes, era preciso devolvê-los ao sítio certo, quase com as mãos, porque, senão, nunca mais voltariam à sua cara. Já passou muita vergonha com seus olhos.
Ela devia estar tonta com alguma coisa também, porque não conseguia atinar com apertar o laço da combinação. Ele quis ajudá-la, mas, depois, esqueceu o decoro. E Edite também, afora as resistências da praxe, a manga estava madura e doce. E Naxe-homem, cheio de fome, sentiu-a. A última lembrança sóbria que ele tem do acontecido foram as mãos dele a tentar fazer o laço sob os peitos de Edite. Depois se confundiu todo, ainda mais do que ela. Ele nunca soube lidar muito bem com laços e rendas, já disse. Daquela vez as rendas roubaram seus olhos e os laços roubaram suas mãos. Não atinou em segurar os olhos com as próprias mãos, para colocá-los de volta à cara _ as mãos estavam ocupadas. E estavam perdidas no laço de fita.
E ele então sonhou que a manga madura tinha virado prova de mel e, depois, cuscuz quente com manteiga derretida. Alguém lhe trazia o leite fresco de cabra e, noutra mão, papa quente de milho novo. Viu o xarém da kunda com bonje-fava e barriga de atum velho, cozinhado na pedra de fogão. Pelo seu nariz, passou o cheiro a fornalha em ano de fartura. Sua pele sentiu a maresia fresca em noites de lua cheia; e a serenata ao longe, vinda do Porto, cantava no violão de cordas “ Forsa de Kretxeu”. Estavam os dois como navio no mar.
Bem à sua frente, tanta fartura em corpo de mulher. Assim a morna virou txabeta e foi aí que o luar entrou pelo quarto adentro e lhe mostrou uma expressão de mulher que mais era sorriso que medo. Espiou para os olhos fechados dela, e esperou o famoso “não!”; e ainda passou a mão pelo próprio corpo, a ver se ouvia direito, mas só sentiu os calores e o que julgou ser o bater do coração. Os dois eram café quente de bule.
Então tomou-a.
E assim Inácio lembrou os últimos momentos em que Edite ainda se chamava Edite e dormia feliz na sua casa do Galeão. Ele ainda sentado na sua cama, nu prite os dois; Naxe segurava a queixada com ambas as mãos e cuidava em acordar Edite, enquanto era tempo. Em vez disso, foi à janela ver a Lua e pensou que devia ser isso o que chamavam de amor: ter uma mulher, desejá-la profundamente, poder estar com ela uma e outra vez e, ainda assim, querer viver com ela, todos os dias, melhor dizendo: todas as noites do resto das suas vidas.
- Quero me casar com Edite. Vai ser minha mulher! Vou falar ao Papai, vou dar uma satisfação às famílias, minha e dela. E tudo se vai resolver pelo melhor._ Tudo no perfeito sigilo, claro; ninguém, para além dos pais e da mãe dela, precisava saber daquela noite. Então os dois formariam a sua família e ele não só se responsabilizaria pelo acontecido, como teria a mulher dos seus sonhos. Edite, todas as noites.
Já via Edite fazendo sua comida, parindo seus filhos. E ele trabalhando muito, fazendo tudo o que fosse necessário para que não lhe faltasse nada; fazendo-a feliz, como Mamãe e Papai eram. Inácio-homem-que-honra-as-calças-que-veste voltou para cama decidido a reparar o mal. E acordou Edite. Ela parecia assustada e ia-lhe fazer uma pergunta importante…, mas nisso entraram pelo quarto adentro e viraram ambas as vidas do avesso. O resto foi um pesadelo. Primeiro a mãe dele; depois a parteira; depois ele foi expulso, para que conversassem com Edite sozinha. Depois, no fim, todos da sua família e mais Edite, que não conseguia justificar a sua verdade de que Inácio teria sido o seu primeiro homem… Ela chorava, e chorava, e dizia que não: não ia voltar para a casa da Mãe, assim.
- Assim como, Edite? Vais voltar assim como chegaste: MULHER!
- Não senhora, eu entrei aqui, menina, não vou sair daqui mulher, como se não fosse séria. Minha mãe não vai aceitar isso. Eu vou parar na boca de mundo.
- Menina, Edite?! Se eras menina, então onde está a tua prova? Aqui ninguém entrou e ninguém saiu. Inácio não te deve nada. Eu vou dar satisfação à tua mãe, porque sou mãe, e ela deve estar preocupada com o teu desaparecimento. Mas Inácio não te deveu. Coitada da tua mãe! Que vergonha vai sentir por ti…!
Edite chorava só. E chorava muito, sem saber o que dizer.
A sabatina de Edite podia ser mais dolorosa, mas a sabatina de Inácio não era menos vergonhosa. Nhu Artur levou o filho para outro quarto a ver se, longe das mulheres, ele diria a verdade.
- Inácio, meu filho – reclamava o pai, com ele a sós _ tu não sentes uma mulher quando ela serve um homem pela primeira vez?
- Papai, ela me disse que nunca tinha tido outro e eu acreditei.
- Mas sentiste ou não a diferença? Tu és um moço viajado, filho. Não me digas que não sabes sentir essas diferenças!
- Não senti, Pai. E não me lembrei de pensar em sentir isso. Eu acreditei nela. Antes disso, ela tinha todo o jeito de menina nova.
- Jeito é uma coisa, filho; mas corpo… corpo de mulher é outra coisa. Estou a falar do corpo dela, tu me entendes, Naxe.
- Mas eu não senti nenhuma diferença. Nem no corpo dela, e nem no seu corpo de mulher
- Inácio, não me atrapalhes a cabeça: não sentiste a diferença entre ela e as mulheres, ou a diferença entre ela e as meninas novas que te serviram?
- Oh Pai, paxenxa…eu esqueci de me lembrar de pensar nessas diferenças. Mas eu assumo as minhas responsabilidades. Eu sou homem, eu dei a minha palavra a uma mulher; e vou assumir as minhas responsabilidades.
- Pois, claro! Desde que mundo é mundo, nenhum Furtado deixou de cumprir com as suas obrigações. Mas primeiro, há que ver quais as tuas responsabilidades. Porque também nenhum Furtado serviu jamais de chacota, nem tomou os restos de outro homem.
Pela primeira vez na vida, Inácio sentiu que a sua vida não era dele e que, definitivamente, não estava nada compassado: nem os seus sonhos, nem os seus planos, nem a sua palavra de honra. O pai pediu que ele esperasse no quarto. Ainda ouviu seu pai chamar sua mãe para a sala e os dois saíram de lá e não lhe disseram um piu. Ele num quarto, Edite e as sentinelas no outro.
Depois disso, eram só reuniões. Chamaram a Mãe de Edite, chamaram a Madrinha…parece que todas foram ver a tal combinação que ele tinha trazido e tinha ajudado Edite a vestir. Soube também que os lençóis e tudo o mais foram entregues à família de Edite, como prova da não responsabilidade de Inácio. Ele, realmente, não tinha visto sangue nenhum, mas teimava em dizer que aquilo era tudo muito estranho. Edite não era mentirosa e não se tinha metido na sua cama como uma mulher que já era mulher. Havia algo de especial nela. Todo o jeito dela parecia estar a descobrir o mundo pela primeira vez. A manga de Inácio foi colhida na hora. Mas como se fazer entender se não havia a prova? Não podia provar, realmente. Mas não estava tranquilo.
A mãe de Edite passou semanas na cama. E, depois de melhor, ficou meses sem ir à igreja, único lugar que frequentava, desde que ficara viúva. Edite passou a ter má fama, ficou na boca do povo e, pior do que isso, Edite odiava-o. Nunca mais se encontraram. Nunca puderam conversar sobre o assunto. Ela evitava-o.
Encontraram-se um dia no Tribunal, para onde o Tio dela lhes levou. Não fossem os Furtado pensar que, só porque o pai dela tinha morrido, ela não tinha a quem recorrer.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

1º PRÉMIO NACIONAL DE INCLUSÃO - partilho MOMENTOS do conto em nome da mãe

PEDAÇO DO CAPÍTULO 1 – Casa de tranças

- História, história.

- Fortuna do céu amém!

Uma vez tinha uma menina que era eu, a Clara, e o meu irmão, Camões.

A história que te vou contar é para o meu irmão dormir. Este é o meu irmão Camões. Ele tem cinco meses. Ele só tem um nome de igreja e um nome de casa. Nossa Mãe me contou que havia um homem muito sabido que se chamava Camões e ela gostava muito que o Camões se chamasse Camões, como o mais velho dos livros. O Chefe lá do registo civil mandou dizer à minha mãe que ninguém se chama Camões. Era preciso chamar o menino de Luís, então.

A minha mãe achou que Luís não tinha nada a ver com Camões:

- No registo manda o senhor, no meu filho mando eu.

- Minha senhora, Camões é o apelido de um homem muito sabido, deveras, mas não é nome. Ele se chamava Luís de Camões. Era um grande homem, um escritor e tudo, assim como a Professora lhe contou…

- Camões, Sr. Chefe. O filho é meu. O pai dele viajou eu ainda grávida. Não há-de ser o senhor a escolher o nome para o meu filho, se faz favor.

- Luís, senhora. Luís é que é o nome próprio. Tenho dito, em nome da Lei. Nisto a minha mãe mandingou e quando ela fica assim não responde um piu. O Chefe deu as costas e foi lá para dentro. A senhora do registo queria era obedecer ao Chefe. Minha Mãe deu as costas e foi chamar Tio Sim. Essa não era uma razão para se decidir sozinha. Trouxe o homem da família. Mas Tio Sim achou que não tinha precisão de incomodar o Chefe. E o Tio Sim, que sabia assinar, assinou. E a Tia Segunda, que sabia assinar, assinou. E Mamã que não sabe assinar não assinou.

 Chegou à casa e disse:

“Vamos dar banho ao Camões”.

  “Vamos dar de mamar ao Camões.”

“Camões já fez xixi.”

“Camões já sabe sorrir.”

“ Camões é um menino sabido. Daqui a pouco come cachupa.”

E ficou Camões.

A história que te vou contar é para o irmão Kodê dormir.

Eu sou a Clara, tenho cinco anos e vou estudar a 1ª classe.

O meu nome de casa é Preta, mas meus irmãos e nossa Mãe me chamam de Netinha, porque tem semanas que a Vovó vem passar conosco e então, assim, ninguém se confunde. Vovó conta que antes de se casar com Papai Velho, todos a chamavam de Clarinha de Dona Tuda de Compá António.

Diz que o Pai dela foi um grande emigrante mercano que tinha muitos afilhados cá na terra. Depois que se casou, passou a ser Clara de Gregório Simas. Foi assim que Vovó se chamava quando se casou, por procuração, com o Marinheiro de Mar Alto. Ela tinha 15 anos. Aos 20 anos, já mulher arredondada, conheceu Nhô Gregório na missa de sete dias do seu Pai. Diz que o marido ouviu dizer que já não havia nenhum homem na família para cuidar da honra da sua esposa; e resolveu dar a sua razão para voltar para a terra.

E veio mesmo. Então, sim. Foi aí que nasceram todas as tias da família.

Tio Sim veio no fim. Tia Rosa, Tia Rosinha, Tia Rosita e Tia Rosenda; Tia Maria Sábado, Tia Domingas, Tia Quinta. Então Mamãe Velha não era mais a Clara. Passou a ser Mãe de Sete Filhas. Nominho: Mãe de Sete.

PEDAÇO DO CAPÍTULO 6

Dizem-me os jornais que chove em Cabo Verde: Forti sábi! Se a esperança d’azágua se renova a cada dia e a boa nova da chuva é promessa de ano bom, então à minha boca vêm palavras como milho, fartura, feijão, saúde, festas e certeza. Que o nosso Cabo Verde se faz em segunda sementeira: na monda e na ramonda; e que as bonecas de milho, as cordeiras de feijão, o milho verde assado e a katxupa de cada dia se cozinham, nas três pedras do fogão, no tomar a bênção e no rabo da enxada.

Semear e colher, com o coração de pescador e a certeza do chão que pisas, está também nos livros, cada vez mais, cada vez sim, nos livros. Porque é nos livros que somos! _ e foi contada a nossa história de azeviches. E, nos livros, a morabeza se dá a conhecer para o mundo. Chove em Cabo Verde.

O Contador de Histórias me disse que choveu também em S. Vicente. Sinal de boas águas. De Pe. António Vieira a Mané Quim, haja testamentos de muitos Napumocenos para iluminar a nossa história de azeviches. E haja também Gracinha(s), que herdem, no feminino, uma estória para se contar: com as nossas próprias cabeças e com os pés bem finkados na TERRA: Terra chão, Terra mar, Terra céu.

É que, segundo Princezito, mar é prolongamento de terra, só que na versão molhada. Para verdianos e crioulas, nosso mar e nossa terra… é tudo uma coisa só. E os nossos sonhos…nosso orgulho é tão grande, porque amparados por mil águas: o doce da chuva e o salgado do mar.

Então sim, como dizia a Preta. Decidi me meter nesta história de kunfiada que sou. Eu era para lhe falar de uma bela mulher, dessas que não mais nascerão e que nos deixam uma saudade sem dor, um alívio pelo fim do sofrimento de sete anos e uma morte _diga-se, mesmo que pareça estranho _ tão digna quanto a vida.

Se eu contasse uma história da menina que nasce, cresce e se casa lá pelos interiores de Santiago, forçada à situação de analfabeta, e depois de separada, pelo machismo do seu tempo: e que pare e cria cinco filhos machos e cinco filhos fêmeas, e faz deles dois médicos, duas freiras, um jurista, quatro professores, um electricista e um psicólogo; e todos muito unidos; se somar a estes milagres as deslocações de oito kms diários de ida mais outros de volta, a pé, para se completar o Ensino Básico na Vila, e depois no Liceu da Praia; e depois os estudos na Europa, nas Américas e nas Áfricas, conforme o destino de cada filho, sem que nunca se tenha perdido nem a fé e nem a ligação afetiva entre os membros da família, pode-se entender a grandeza de certas mulheres.

Fica aí uma breve estória do tipo de heroína que a História nunca registará. Estou, sim, de luto; dizem-me que posso ficar até o dia da missa de 7º dia a receber visitas de pêsames, sem trabalhar. Fora o fato de que os últimos meses foram muito sofridos para ela, honestamente, não há o que se lamentar a sua passagem. Mas talvez haja: certas renúncias inconfessas, muitas abnegações escondidas, em nome da educação dos filhos...vá-se lá saber…

quarta-feira, 18 de julho de 2012

HAPPY BIRTHDAY, MADIBA!

Aaah! Dalibhunga... MANDELA FAZ 94 ANOS, HOJE. Um exemplo de vida, um africano de fibra: orgulho negro. CONGRATS, TATA. MAY GOD KEEP YOU SAFE...

sexta-feira, 13 de julho de 2012

MENINOS EU VI! Eu vi os vómitos viscerais, eu vi o desespero em querer prolongar a vida. Eu vi a angústia de saber mas nunca aceitar a derrota. E depois a teimosia em não aceitar o fim. Eu vi todos a embarcar na derradeira esperança de que talvez consigamos vencer esta; quem sabe tenhamos mais um ano juntos; quem sabe, então, mais seis meses. Bom, o bom Deus nos dê a graça de um mês... E a cada dia, os ojetivos ficando menores, a esperança mais modesta. Então, chegada a hora, ninguém viu, ninguém vê, ninguém quer ver. - Eu já perdi a fala? Ela perguntou de olhos arregalados e feição desesperada. Acalmei-a: - Não, mamã. É a garganta que está inflamada por dentro e a voz não consegue sair. Daí por diante, colávamos os ouvidos à sua boca e tentávamos ler-lhe os lábios. Faltavam apenas dois dias. E esperávamos que a voz voltasse. De vez em quando, juntava todas as forças e dizia tudo o que era preciso. Sábado, 2 de Junho, 12h00: Eram três tigelas, uma para cada filha. Cada uma tentando ver o que é que daria para passar na garganta: remédio, leite, sopa??? Tudo escorregava pelo canto da boca. A afilhada, sobrinha, Doutora, segurava os pulsos e nós outros esperávamos o milagre. O quarto parou. O silêncio atropelou os movimentos. Só Orisa desligava as coisas. Desligava, e desligava, e não parava de fazer sem falar. Tirava as almofadas, fechava o soro, colocava a cabeça de lado… Eram olhos nela e na mamã, à espera do milagre. - Que horas são? Perguntou depois de lhe pousar a mão. - Meio dia em ponto. Nós todas e as nossas tigelas na mão. E foi o ponto final. E depois disso, e depois de tudo, e 45 dias depois… ENTÃO, POR QUE CHORO?

terça-feira, 10 de julho de 2012

A VIDA É UM DOM DE DEUS
Clarice Vieira Évora da Graça, nascida a 08 de Março de 1951 e falecida a 2 de Junho de 2012: professora, parteira, costureira, autora de músicas religiosas, uma mulher muito forte e determinada. Último desejo: voltar a Cabo Verde, conhecer seus netos novos. Desejo realizado. Dai-lhe senhor o eterno descanso. entre os esplendores da luz perpétua, descanse em paz. Que assim seja!

quinta-feira, 8 de março de 2012

FELIZ DIA MULHER

Quem é esta que surge como a aurora,
bela como a lua
brilhante como o sol,
Terrível como o exército em ordem de batalha?
(Cântico dos Cânticos)

É preciso abrir as janelas. Escancarar as cortinas. Trazer o sol para dentro de casa. Deixar o calor de seus raios penetrar em todos os aposentos.
É preciso continuar. Continuar. Continuar. Continuar. Arrumar a bagunça das crianças. Regar as plantas. Arrancar as folhas mortas da violeta cor de violeta. Tirar a poeira dos móveis. Limpar o cinzeiro das cinzas do cigarro de Albano.

As janelas estão abertas. É preciso mantê-las abertas. O sol.
Amarelo. Faz calor. Há papeis por todos os lados. Livros espalhados pelo chão. Paredes recobertas pelos super-heróis de César e de Cícero. É preciso lavar. Varrer. Passar pano no chão. (Por que Valdelice não veio? Por quê?) é preciso preparar a aula de amanhã…

FONTE: A Mulher do dia, de Ceila Ferreira, professora da UFF-Brasil - Prémio Clarice Lispector 2011

UM ABRAÇO AMIGO E MUITA CORAGEM PARA OS DESAFIOS DE CADA DIA. Beijos

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

HINO CABO VERDE 1975-1996

Esta é a nossa Pátria amada

Sol, suor e o verde mar,
Séculos de dor e esperança
Esta é a terra dos nossos avós!
Fruto das nossas mãos,
Da flor do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada

Viva a pátria gloriosa!
Floriu nos céus a bandeira da luta.
Avante, contra o jugo estrangeiro!
Nós vamos construir
Na pátria imortal
A paz e o progresso!

Ramos do mesmo tronco,
Olhos na mesma luz:
Esta é a força da nossa união!
Cantem o mar e a terra
A madrugada e o sol
Que a nossa luta fecundou

AUTOR: AMÍLCAR CABRAL
A República da Guiné-Bissau continua com o mesmo hino, da mesma forma que mantém o nome do partido fundado em 1956, PAIGC

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUES

É dos pés ligeiros do miúdo Zito, de seu olhar atento, de sua esperteza aguçada que nos vem a urgência de libertar a Angola.

_ Vavô! Vem depressa. Tem preso!
Velho Petelo se virou e interrogou com seus olhos pequenos piscando na luz do sol da manhã coado nas folhas da mandioqueira:
- Menino disse tem preso? Viste com teus olhos?
Arrastando a perna esquerda e seguido por miúdo Zito, atravessou na sala e saiu para o areal vermelho. (9)

O espaço Angola é cartografado em cores e contrastes. Não simplesmente algumas cores retiradas ao calhar do Arco-Íris; mas, sim, a sua representação subentendida nas chamadas cores da África: o verde, o vermelho o amarelo, reforçados desde Vidas Novas, tal como o negro simbólico associado ao Continente e ao homem africano que se pretende conscientizar. E as leituras do branco, muitas vezes em contraste com o Negro, outras em mosaicos inquietantes. Referências identitárias em conflito, uma angolanidade que urge e uma dignidade do angolano, do africano e da humanidade como meta maior.
O deslocamento das personagens, sempre presente ao longo da narrativa, é uma das metáforas do texto: o deslocamento de Domingos Xavier, que de operário e bom Pai de família, homem simples com pretensões humildes _ quase todas elas sublimadas ao futuro do Bastião _ , se transforma, no seu penoso trajeto à cidade-prisão, em um quase mártir do silêncio. Sinal que representa a resistência à violência e ao ultraje, e que vence, em nome dos outros irmãos, com a arma do riso. O deslocamento posterior de Maria e Bastião, “Mulher com Mona”, também para a cidade, à procura de Domingos; e de todos os jovens e mais velhos que se mobilizam e aderem à causa; mas o mais simbólico de todos é a ação da dupla Avô e Neto, duas gerações, a experiência- sabedoria e a continuidade-esperança, cujos percursos marcam o ritmo da narrativa, em várias sequências significativas, pelas “ruas asfaltadas no meio do rio negro que desagua na cidade branca” onde, quase sempre, se vêem “as árvores velhas chorando seiva nos passeios” (p.13). Deslocamentos do campo para a cidade, da cidade negra para a branca, do espaço interior dos personagens para o exterior, que são Angola e a luta; da alienação para a conscientização. Deslocamentos, tantos quantos necessários. E alguns deslocamentos que permanecem por fazer.

Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava Mano Xico, um dos afilhados do velho marinheiro. Zito gostava ir. Além de ver tudo com seus olhos curiosos, os carros bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas, alocava com mano Xico na quitanda da praia e depois ficava, banzo, a ouvir falar de coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia aos meninos da mesma idade, alguns mesmo meninos da escola que não aceitavam. (13)

Miúdo Zito são os olhos e as pernas de Vavô Petelo que, embora “Takudimoxi”, aceita o desafio de fazer a travessia de Angola, das ruas, dos musseques, da ilha, da praia, da cidade limpa e, principalmente, da Angola que existe em cada um dos personagens.
Quando, finalmente, o leitor se descobre, em plena rua da cidade, no meio da multidão atônita com a figura física imponente do Negro, ele descobre que Domingos Xavier está curvado, forçosamente curvado porque amordaçado, no seu corpo e na sua dignidade; a partir desse momento a morte antevista passa a ser uma vitória.
O enredo é uma convocação, em tempo presente/urgente, para uma melhor Angola. O texto literário é construído com um repertório lexical e com estratégias de narrativa que transferem para a materialidade da língua as propostas e questionamentos de nível temático: em que o ritmo, as figuras de estilo, os focos e a construção das personagens se harmonizam com o conteúdo do texto-projeto e do projeto-homem novo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Um aniversário
Diziam cartas e telegramas
da família:
- Muitos parabéns, muitas felicidades
E um irmão doente
a mãe cheia de saudades
e a pobreza
calmamente consentida na existência religiosa.
E a glória de ter um filho formado em Medicina!

Fora do lar
um ex-virtuoso amigo que se embriaga
os nossos exportados par São Tomé
a prostituição
a angústia geral
a vergonha

E a esperança de ter um dos nossos formado em Medicina!

No mundo
a Coreia ensanguentada às mãos dos homens
fuzilamentos na Grécia e greves na Itália
o apartheid na África
e a azáfama nas fábricas atómicas para matar
em massa matar cada vez mais homens

Eles espancando-nos
e pregando o terror
mas no mundo constrói-se
no mundo constrói-se.

E o nosso formado em Medicina
construirá também!

Nós com a certeza e com a incerteza dos instantes
com o direito e enveredando por caminhos escabrosos
nós os fortes fugindo como gazelas débeis.

E no mundo constrói-se
no mundo constrói-se.

Este um dia do meu aniversário
um dos nossos dias
de vida sabendo a tamarindo
em que nad dizemos nada fazemos nada sofremos
como tributo à escravidão.

Um dia inútil como tantos outros até um dia
Mas duma inutilidade necessária.

Setembro de 1951
(NETO, 1979, p 76-77)

Confiança
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensado o tempo

Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso

(…)
As minhas mãos colocaram pedras
no alicerce do mundo
mereço omeu pedaço de pão.
(sem data)
(Agostinho Neto, p. 67 in ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da Literatura Angolana. 3ed. S/C, União dos Escritores Angolanos. 1985

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Lisboa 1971
A Ovídio Martins e Osvaldo Osório

Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela.
Em verdade éramos o gado mais pobre
d'África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.
E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber donde... ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.
Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.
E num caminhão, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d'inverno

(Arménio Vieira, In Vozes Poéticas da Lusofonia.edição: Câmara Municipal de Sintra. Organização: Instituto Camões. Coordenação: Alice Brás e Maia Armandina. Mem Martins, Maio 1999, p.2)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Casa & Verbo propõe esta semana uma salada de textos de literatura africana, especialmente de Cabo Verde e Angola, onde ressaltam as ideias da luta da libertação de África. Acreditamos que a memória é o maior tributo a prestar a seres dignos de glória, uma homenagem a todos os heróis nacionais e estrangeiros... os filhos das grandes causas: UNIDADE E LUTA.

Anti-evasão
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada
(Ovído Martins, in Gritarei Berrarei Matarei, Não vou para Pasárgada 100 poemas. Praia: Insituto de Promoção Cultural, 1998, p.25)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

De boca concêntrica na roda do sol
[…]
Do coração da revolta
A Pátria que nasce
Toda a semente é fraternidade que sangra
A espingarda que atinge o topo da colina
De cavilha & coronha
partida partidas
E dobra a espinha
como enxada entre duas ilhas
E fuma vigilante
o seu cachimbo de paz
Não é um mutilado de guerra
É raiz & esfera no seu tempo & modo
De pouca semente E muita luta
(Corsino Fortes, In Vozes Poéticas da Lusofonia.edição: Câmara Municipal de Sintra. Organização: Instituto Camões, 1992, p.6).

Editernos rios de sangue

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Casa & Verbo propõe esta semana uma salada de textos de literatura africana, especialmente de Cabo Verde e Angola, onde ressaltam as ideias da luta da libertação de África. Acreditamos que a memória é o maior tributo a prestar a seres dignos de glória, uma homenagem a todos os heróis nacionais e estrangeiros... os filhos das grandes causas: UNIDADE E LUTA.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CERTIDÃO DE NASCIMENTO, 11/11

“Casa & Verbo” é um projeto de ensino e pesquisa em línguas, literaturas e memória.

A nossa principal área de atuação é a cultura cabo-verdiana em suas diferentes vertentes. O objeto principal é a língua: como opção veicular, como opção de registo da memória e em suas diferentes formas de arte. Lusofonia e africanidades são, naturalmente, temas que estão associados à caboverdianidade e estão sempre presentes em nossas pesquisas.

O projeto nasce como alternativa aos projetos de pesquisa academicistas e é uma fuga à programação letiva rígida. Ele pretende que a pesquisa esteja coberta de seriedade mas movida pelo interesse e, por isso, retoma todas as questões que, por falta de tempo, espaço ou relevância institucional, não couberam em nossas monografias, teses e artigos. Acolhe ainda temas relevantes da área de Letras que não se fazem presentes nos planos de estudos das instituições de ensino em Cabo Verde.

Casa & Verbo, pretende prestar um serviço à cultura cabo-verdiana, sem sair dos limites da identidade cultural e aproveitando-se da transversalidade da língua para atingir seus objetivos. Feita a pesquisa, recolhidas as questões, procuramos o aparato teórico e utilizamos o sujeito da enunciação apropriado para dialogar com o nosso interlocutor: seja ele académico, ativista cultural, instituição universitária ou cidadão comum.

Acreditamos que Cabo Verde tem um passado a redescobrir, especialmente aquele proveniente da sua ascendência marcada pela oralidade. Desafiamos os estudiosos e as instituições a fazê-lo, seguindo o percurso das línguas e das literaturas.

O Projeto pretende respeitar os cânones decididos em outras latitudes, mas assume a responsabilidade de debater a nossa realidade, partindo do nosso chão. O nosso lugar da fala é COM o Cânone. É preciso nos conhecermos a nós próprios, antes de nos importarmos com os filtros impostos lá fora.

Nossa meta maior é engrandecer Cabo Verde, recosturar as nossas formas de identidade e preservar a nossa memória no Livro Grande. Ambicionamos fortalecer o diálogo com instituições da CPLP, criar parcerias e manter permanente interação com países e nações que têm laços históricos e culturais com Cabo Verde.
E assim diríamos em crioulo formal: Ale-u! Txiga, fasi asentu.
(Eis que vem/Seja bem-vindo. ENTRE, ESTEJA À VONTADE E FAÇA ASSENTO/SENTE-SE)
NO PRAZER DA ESCRITA E NO DEVER DA PARTILHA.