Pensatempo : Língua Portuguesa
e sua relação com a identidade nacional cabo-verdiana
As línguas são essenciais para a identidade dos grupos e dos indivíduos, bem como para sua coexistência pacífica. Elas constituem um factor estratégico para a obtenção de um desenvolvimento sustentável, além de uma articulação harmoniosa entre o que é global e o que é local.
(Dr. Koichiro Matsuura, Director Geral da Unesco/08)
1 Problematização
EXISTEM RAZÕES PARA QUE À LÍNGUA PORTUGUESA SE ATRIBUA O ESTATUTO DE LÍNGUA NACIONAL?
Damos à palavra pensatempo o significado de uma reflexão breve, porém neutra; ou, pelo menos, numa perspectiva plural. Num pensatempo, tentamos olhar para o mesmo tema, antes pensado com olhar próprio e convicções havidas, hoje contemplado e “ozerbadu” num outro redesenhar, com o olhar de quem quer redescobrir o mesmo assunto de outra forma. Neste pensatempo, propomo-nos a rever a identidade nacional (cabo-verdiana) numa perspectiva diferente: como contar a história da identidade nacional, sendo a LP protagonista? Ela seria um veículo de transmissão, a memória, um dos elementos …parte da essência? Que papel teria e que estatuto teria a LP na construção da nossa identidade? Para uma fundamentação coerente, duas perspectivas diferentes devem ser consideradas: uma perspectiva política e uma perspectiva linguística; e dois níveis de orientação em política de língua devem ser consultados: o da orientação nacional e o da Organização das Nações Unidas - implementadas pela Unesco.
Iniciamos esta reflexão que pretendemos “ligeira” e de leigos, com uma epígrafe extraída da Mensagem do Director Geral da Unesco, por ocasião da celebração do Ano 2008 – Ano Internacional das Línguas, proclamação feita pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A preocupação central da Unesco relativamente às línguas é com a sua protecção e preservação. E o desafio lançado a todos, ao longo da mensagem de celebração, é o de promover um ambiente de multilinguismo, por meio de atitudes e políticas concretas que permitam o seu uso. No ambiente ideal de multilinguismo, todas as línguas existentes e especialmente as que estão em perigo, devem ser usadas e todos os falantes devem esforçar-se por dominar, para além da sua língua materna, a língua nacional, a oficial e, pelo menos, uma língua internacional.
A questão que se deve colocar, especialmente em Cabo Verde é: o que é dominar uma língua? Que línguas dominamos? É ou não um ganho ter duas línguas? Existe conflito linguístico? Se existe uma “concorrência desleal” como já se disse que existe, ela é feita efectivamente “contra” o Crioulo/cabo-verdiano? Não será o TEMPO de nós, crioulos, mestiços culturais assumidos, resolvermos o “Problema do Onkombe”?
2 O Problema do Onkombe
O conceito genérico de domínio de uma língua abarca o falar, o escutar (compreender), o ler e o escrever. O contexto linguístico de Cabo Verde permite que todos os cidadãos residentes tenham contacto com duas línguas em permanente convívio e que são, do ponto de vista linguístico, complementares. Em nosso entender, a diglossia já assumida pelos estudiosos nacionais e estrangeiros, à qual preferimos acrescentar o adjectivo “funcional” é um estado de desenvolvimento que retrata a estória e a História do povo das ilhas. A construção do bilinguismo, sendo assumida politicamente na Constituição e nas políticas do Governo, deve ser entendida como uma medida que requer uma reflexão serena e avisada, do ponto de vista técnico. Em termos estritamente técnicos e numa perspectiva sincrónica, podemos dizer que, em sua maioria, os cabo-verdianos são diglotas e não bilingues e que a construção do bilinguismo passará, necessariamente, por criar políticas activas que permitam um maior domínio da fala em LP e da escrita e leitura em LCV. Ao falante cabe o compromisso de se esforçar por fazer bom uso de ambas as línguas e assumi-las como suas, numa perspectiva de complementaridade e não “de costas voltadas”.
Se fosse adequado considerarmos a imagem da concorrência (linguística), e se em tal cenário pensássemos em vantagens, a LCV não estaria em posição de “desvantagem”. Pois é a fala que realiza uma língua, que a escrita depois _ mas não necessariamente _ tenta dar conta de representar. Existe uma quantidade de informações que gestos e expressões corporais, entoações e mil não-ditos transmitem e que não são representados pela escrita. E quando utilizamos a fala, e principalmente na perspectiva de discurso na acepção de Saussure, pretendemos a produção oral, com as marcas da individualidade, espontaneidade, criatividade, estilo…
Aos que pensam que basta o estatuto de língua oficial para que uma língua tenha prestígio e que chamar um idioma de dialecto desencoraja o seu uso, vejamos as designações que os cabo-verdianos utilizam para se referir às suas línguas: dos movimentos literários ao Parlamento, dos textos legislativos aos científicos, em prosa e verso, em Crioulo e em Português:
Língua Portuguesa: Estatuto- língua oficial
Língua Cabo-verdiana: Estatutos: língua materna, língua nacional, língua de berço, língua di téra, língua di povo. E o melhor de todos: o Crioulo/língua crioula (aqui vale explicar que os cabo-verdianos se autodenominam “crioulos” e que “Nha crioulinha” é uma forma verdiana de dizer “minha princezinha”
Como entender uma política de língua que não repense o nosso falar português? Temos, mesmo, um português realmente falado em Cabo Verde? Pode-se encontrar o registo culto, o padrão… mas e o coloquial/familiar? …o informal, quando ele acontece? Criamos? Inovamos? Quantos falam espontaneamente? Quantos fazem opção real pela LP? Se poucos, como nos parece que vem acontecendo, como poderá acontecer uma reconciliação e uma apropriação com a nossa língua oficial?
3 Língua Portuguesa – Língua Nacional
O conceito de língua nacional é utilizado, frequentemente, em oposição ao da língua oficial. A primeira existe numa sociedade que se realiza, cultural e afectivamente, numa língua cujos laços unem toda uma nação que normalmente tem outra língua que a representa oficialmente; no campo semântico em que se usa o termo língua nacional, estão associados entre si, os conceitos de resistência, afirmação, consciência linguística… Do ponto de vista linguístico, a língua nacional é aquela que facilita a união, a comunicação entre regiões díspares e é conhecida e utilizada por todas as classes sociais, preferencialmente, em qualquer situação de comunicação.
Joaquim Mattoso Câmara Jr , utiliza o termo “língua comum” como sinónimo de “língua nacional”, enfatizando o factor da comunicabilidade dos falantes e admite que “a língua nacional nem sempre corresponde ao conceito estrito de nação, como Estado politicamente constituído e soberano. Num desses estados pode vigorar mais de uma língua nacional (…) e uma língua comum pode vigorar em mais de um Estado”
Segundo a Enciclopédia das línguas no Brasil, língua nacional “É a língua do povo de uma nação enquanto relacionada com um Estado politicamente constituído (…) a língua nacional caracteriza-se como uma em virtude de uma relação de unidade imaginária da língua que é atribuída à Nação.”
Há consenso entre diferentes manuais de que à língua nacional é associada a ideia de língua falada num determinado território que, por reflectir uma determinada herança étnico-cultural, representa um elemento caracterizador de uma consciência nacional e, nos “casos mais evoluídos”, é também suporte de uma expressão literária autónoma.
Ao termo língua oficial, por outro lado, podem estar associados conceitos antagónicos. Na definição dada pela Unesco, ela é “a língua utilizada no quadro das diversas actividades oficiais: legislativas, executivas e judiciais de um estado soberano ou território.”
Na perspectiva de linguística descritiva e sincrónica, Cabo Verde, hoje, só poderia ter como língua oficial, o português, e como língua nacional, o cabo-verdiano. Numa perspectiva de política de língua que melhor serve aos interesses da Nação e do Estado, do País enquanto integrante da CPLP e da ONU, é razoável que se repense, ao lado de uma proposta de oficialização gradativa da LCV, a tematização de um estatuto de língua nacional para a LP. Fundamentos linguísticos para se lançar tal proposta residem nas seguintes definições linguísticas:
a) a língua nacional nem sempre corresponde ao conceito estrito de nação; b) Num desses estados pode vigorar mais de uma língua nacional (…) e uma língua comum pode vigorar em mais de um Estado; c) é uma herança étnico-cultural; d) é também suporte de uma expressão literária autónoma; e) esteve sempre presente em todos os momentos marcantes do processo da caboverdianidade e permitiu e permite ainda que outros povos nos identifiquem;
Como conclusão, diríamos que as ciências da linguagem descrevem a situação linguística e oferecem dados e caminhos possíveis para que os estados possam implementar suas políticas de língua. O Estado decide seus objectivos e metas em relação ao seu património linguístico e pode utilizar as ciências da linguagem para facilitar a concretização das suas políticas. Da mesma forma que existe uma diglossia funcional que é um terreno fértil para a construção do real bilinguismo, existem requisitos mínimos para uma proposta de estatuto de língua nacional à LP, desde que planificada e considerada numa perspectiva de construção. Uma perspectiva de aproximar a LP do falante, de criar um convívio saudável entre as duas línguas, de entender que ambas as línguas são prejudicadas quando uma é considerada, de alguma forma, superior à outra.
Quanto mais dominarmos as duas línguas, melhor nos preparamos para enfrentar os desafios deste mundo em mudança. O problema do onkombe é a sina do mestiço. E de dois rios de costas voltadas, propomos todo o nosso mar, que acolhe os rios e que nos identifica: separando-nos e devolvendo-nos ao mundo, como únicos, singulares, mas fazendo parte do todo que hoje é o mundo globalizado. Falta a todo o mestiço a terceira via, que é a de se encontrar, em paz, com ambas as suas origens. E a África e o africano dar-se-ão melhor com a sua História pois serão dela protagonistas conscientes.
“Daí que a protecção, promoção e valorização das línguas nacionais seja, em muitos casos, promovida explicitamente nas próprias constituições nacionais.”, diz-nos a Enciclopédia Livre. E diz-nos a Unesco na sua mensagem do Ano Internacional das Línguas:
“Temos de agir agora, urgentemente. Como? Encorajando e desenvolvendo políticas linguísticas que permitam a cada comunidade utilizar a sua primeira língua, ou língua materna, o mais ampla e frequentemente possível, incluindo na educação, dominando simultaneamente uma língua nacional ou regional e uma língua internacional. Encorajando também os detentores de uma língua dominante a falar outra língua nacional ou regional e uma ou duas línguas internacionais. Só se o multilinguismo for totalmente aceite poderão as línguas encontrar o seu lugar num mundo globalizado. Por conseguinte, a UNESCO convida os governos, as organizações das Nações Unidas, a sociedade civil, as instituições educativas, as associações profissionais e todos os outros actores envolvidos a incrementarem as suas actividades para fomentar o respeito e promover e proteger todas as línguas, especialmente as línguas em perigo, em todos os contextos individuais e colectivos. (…) O nosso objectivo comum é assegurar que a importância da diversidade linguística e do multilinguismo nos sistemas educativo, administrativo e legal, expressões culturais e comunicação social, ciberespaço e comércio, seja reconhecida a nível nacional, regional e internacional.”
Por um Cabo Verde bilingue, fale mais português e escreva mais cabo-verdiano.
Se preferir, experimente prescindir de uma delas…
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