terça-feira, 31 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUES

É dos pés ligeiros do miúdo Zito, de seu olhar atento, de sua esperteza aguçada que nos vem a urgência de libertar a Angola.

_ Vavô! Vem depressa. Tem preso!
Velho Petelo se virou e interrogou com seus olhos pequenos piscando na luz do sol da manhã coado nas folhas da mandioqueira:
- Menino disse tem preso? Viste com teus olhos?
Arrastando a perna esquerda e seguido por miúdo Zito, atravessou na sala e saiu para o areal vermelho. (9)

O espaço Angola é cartografado em cores e contrastes. Não simplesmente algumas cores retiradas ao calhar do Arco-Íris; mas, sim, a sua representação subentendida nas chamadas cores da África: o verde, o vermelho o amarelo, reforçados desde Vidas Novas, tal como o negro simbólico associado ao Continente e ao homem africano que se pretende conscientizar. E as leituras do branco, muitas vezes em contraste com o Negro, outras em mosaicos inquietantes. Referências identitárias em conflito, uma angolanidade que urge e uma dignidade do angolano, do africano e da humanidade como meta maior.
O deslocamento das personagens, sempre presente ao longo da narrativa, é uma das metáforas do texto: o deslocamento de Domingos Xavier, que de operário e bom Pai de família, homem simples com pretensões humildes _ quase todas elas sublimadas ao futuro do Bastião _ , se transforma, no seu penoso trajeto à cidade-prisão, em um quase mártir do silêncio. Sinal que representa a resistência à violência e ao ultraje, e que vence, em nome dos outros irmãos, com a arma do riso. O deslocamento posterior de Maria e Bastião, “Mulher com Mona”, também para a cidade, à procura de Domingos; e de todos os jovens e mais velhos que se mobilizam e aderem à causa; mas o mais simbólico de todos é a ação da dupla Avô e Neto, duas gerações, a experiência- sabedoria e a continuidade-esperança, cujos percursos marcam o ritmo da narrativa, em várias sequências significativas, pelas “ruas asfaltadas no meio do rio negro que desagua na cidade branca” onde, quase sempre, se vêem “as árvores velhas chorando seiva nos passeios” (p.13). Deslocamentos do campo para a cidade, da cidade negra para a branca, do espaço interior dos personagens para o exterior, que são Angola e a luta; da alienação para a conscientização. Deslocamentos, tantos quantos necessários. E alguns deslocamentos que permanecem por fazer.

Era sempre assim: pegava miúdo Zito na mão, qualquer que fosse a hora, e lá iam para baixo, até na Companhia onde trabalhava Mano Xico, um dos afilhados do velho marinheiro. Zito gostava ir. Além de ver tudo com seus olhos curiosos, os carros bonitos que não tinha lá em cima, as casas grandes e limpas, alocava com mano Xico na quitanda da praia e depois ficava, banzo, a ouvir falar de coisas novas, coisas que, muitas vezes, repetia aos meninos da mesma idade, alguns mesmo meninos da escola que não aceitavam. (13)

Miúdo Zito são os olhos e as pernas de Vavô Petelo que, embora “Takudimoxi”, aceita o desafio de fazer a travessia de Angola, das ruas, dos musseques, da ilha, da praia, da cidade limpa e, principalmente, da Angola que existe em cada um dos personagens.
Quando, finalmente, o leitor se descobre, em plena rua da cidade, no meio da multidão atônita com a figura física imponente do Negro, ele descobre que Domingos Xavier está curvado, forçosamente curvado porque amordaçado, no seu corpo e na sua dignidade; a partir desse momento a morte antevista passa a ser uma vitória.
O enredo é uma convocação, em tempo presente/urgente, para uma melhor Angola. O texto literário é construído com um repertório lexical e com estratégias de narrativa que transferem para a materialidade da língua as propostas e questionamentos de nível temático: em que o ritmo, as figuras de estilo, os focos e a construção das personagens se harmonizam com o conteúdo do texto-projeto e do projeto-homem novo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Um aniversário
Diziam cartas e telegramas
da família:
- Muitos parabéns, muitas felicidades
E um irmão doente
a mãe cheia de saudades
e a pobreza
calmamente consentida na existência religiosa.
E a glória de ter um filho formado em Medicina!

Fora do lar
um ex-virtuoso amigo que se embriaga
os nossos exportados par São Tomé
a prostituição
a angústia geral
a vergonha

E a esperança de ter um dos nossos formado em Medicina!

No mundo
a Coreia ensanguentada às mãos dos homens
fuzilamentos na Grécia e greves na Itália
o apartheid na África
e a azáfama nas fábricas atómicas para matar
em massa matar cada vez mais homens

Eles espancando-nos
e pregando o terror
mas no mundo constrói-se
no mundo constrói-se.

E o nosso formado em Medicina
construirá também!

Nós com a certeza e com a incerteza dos instantes
com o direito e enveredando por caminhos escabrosos
nós os fortes fugindo como gazelas débeis.

E no mundo constrói-se
no mundo constrói-se.

Este um dia do meu aniversário
um dos nossos dias
de vida sabendo a tamarindo
em que nad dizemos nada fazemos nada sofremos
como tributo à escravidão.

Um dia inútil como tantos outros até um dia
Mas duma inutilidade necessária.

Setembro de 1951
(NETO, 1979, p 76-77)

Confiança
O oceano separou-me de mim
enquanto me fui esquecendo nos séculos
e eis-me presente
reunindo em mim o espaço
condensado o tempo

Na minha história
existe o paradoxo do homem disperso

(…)
As minhas mãos colocaram pedras
no alicerce do mundo
mereço omeu pedaço de pão.
(sem data)
(Agostinho Neto, p. 67 in ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da Literatura Angolana. 3ed. S/C, União dos Escritores Angolanos. 1985

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Lisboa 1971
A Ovídio Martins e Osvaldo Osório

Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela.
Em verdade éramos o gado mais pobre
d'África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.
E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber donde... ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.
Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.
E num caminhão, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d'inverno

(Arménio Vieira, In Vozes Poéticas da Lusofonia.edição: Câmara Municipal de Sintra. Organização: Instituto Camões. Coordenação: Alice Brás e Maia Armandina. Mem Martins, Maio 1999, p.2)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

EDITERNOS RIOS DE SANGUE

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Casa & Verbo propõe esta semana uma salada de textos de literatura africana, especialmente de Cabo Verde e Angola, onde ressaltam as ideias da luta da libertação de África. Acreditamos que a memória é o maior tributo a prestar a seres dignos de glória, uma homenagem a todos os heróis nacionais e estrangeiros... os filhos das grandes causas: UNIDADE E LUTA.

Anti-evasão
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada
(Ovído Martins, in Gritarei Berrarei Matarei, Não vou para Pasárgada 100 poemas. Praia: Insituto de Promoção Cultural, 1998, p.25)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

De boca concêntrica na roda do sol
[…]
Do coração da revolta
A Pátria que nasce
Toda a semente é fraternidade que sangra
A espingarda que atinge o topo da colina
De cavilha & coronha
partida partidas
E dobra a espinha
como enxada entre duas ilhas
E fuma vigilante
o seu cachimbo de paz
Não é um mutilado de guerra
É raiz & esfera no seu tempo & modo
De pouca semente E muita luta
(Corsino Fortes, In Vozes Poéticas da Lusofonia.edição: Câmara Municipal de Sintra. Organização: Instituto Camões, 1992, p.6).

Editernos rios de sangue

Sou um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época. (Amílcar Lopes Cabral: 12/09/1924 – 20/01/1973)

Casa & Verbo propõe esta semana uma salada de textos de literatura africana, especialmente de Cabo Verde e Angola, onde ressaltam as ideias da luta da libertação de África. Acreditamos que a memória é o maior tributo a prestar a seres dignos de glória, uma homenagem a todos os heróis nacionais e estrangeiros... os filhos das grandes causas: UNIDADE E LUTA.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CERTIDÃO DE NASCIMENTO, 11/11

“Casa & Verbo” é um projeto de ensino e pesquisa em línguas, literaturas e memória.

A nossa principal área de atuação é a cultura cabo-verdiana em suas diferentes vertentes. O objeto principal é a língua: como opção veicular, como opção de registo da memória e em suas diferentes formas de arte. Lusofonia e africanidades são, naturalmente, temas que estão associados à caboverdianidade e estão sempre presentes em nossas pesquisas.

O projeto nasce como alternativa aos projetos de pesquisa academicistas e é uma fuga à programação letiva rígida. Ele pretende que a pesquisa esteja coberta de seriedade mas movida pelo interesse e, por isso, retoma todas as questões que, por falta de tempo, espaço ou relevância institucional, não couberam em nossas monografias, teses e artigos. Acolhe ainda temas relevantes da área de Letras que não se fazem presentes nos planos de estudos das instituições de ensino em Cabo Verde.

Casa & Verbo, pretende prestar um serviço à cultura cabo-verdiana, sem sair dos limites da identidade cultural e aproveitando-se da transversalidade da língua para atingir seus objetivos. Feita a pesquisa, recolhidas as questões, procuramos o aparato teórico e utilizamos o sujeito da enunciação apropriado para dialogar com o nosso interlocutor: seja ele académico, ativista cultural, instituição universitária ou cidadão comum.

Acreditamos que Cabo Verde tem um passado a redescobrir, especialmente aquele proveniente da sua ascendência marcada pela oralidade. Desafiamos os estudiosos e as instituições a fazê-lo, seguindo o percurso das línguas e das literaturas.

O Projeto pretende respeitar os cânones decididos em outras latitudes, mas assume a responsabilidade de debater a nossa realidade, partindo do nosso chão. O nosso lugar da fala é COM o Cânone. É preciso nos conhecermos a nós próprios, antes de nos importarmos com os filtros impostos lá fora.

Nossa meta maior é engrandecer Cabo Verde, recosturar as nossas formas de identidade e preservar a nossa memória no Livro Grande. Ambicionamos fortalecer o diálogo com instituições da CPLP, criar parcerias e manter permanente interação com países e nações que têm laços históricos e culturais com Cabo Verde.
E assim diríamos em crioulo formal: Ale-u! Txiga, fasi asentu.
(Eis que vem/Seja bem-vindo. ENTRE, ESTEJA À VONTADE E FAÇA ASSENTO/SENTE-SE)
NO PRAZER DA ESCRITA E NO DEVER DA PARTILHA.